É uma Breve antologia de postais desesperados, crónica do escritor catalão Enrique Vila-Matas incluída na compilação Da Cidade Nervosa , editada pela Campo das Letras em 2006. Mas não se pense que este 'desespero postal' escapa ao humor e à ironia com que Vila-Matas costuma narrar todas as espécies de desesperos. Deixamos aqui a crónica quase na íntegra, em época de férias, em época de viagens e em época de postais, não fossem eles uma cor fundamental do «caleidoscópio ilusório do turismo», segundo a expressão de Marc Augé.
Quero pensar que a vaga de bilhetes postais que estes dias tem chegado a minha casa é consequência directa do aborrecimento que provoquei entre os meus amigos em fins de Junho, quando me deu para exaltar com todo o género de refinados e mesmo, ás vezes, irrebatíveis argumentos, as vantagens e satisfações que tem passar o Verão inteiro em Barcelona. Todos tinham o seu bilhete de avião e as suas reservas de hotel já feitas e pagas, todos cantavam as excelências paradisíacas dos remotos países a que iam deslocar-se, todos se sentiam ofendidos quando lhes falei das doenças e outros incómodos esperando-os nesses países que eu – disse-lhes, mentindo ás vezes – já tinha visitado e sabia que não só não valiam a pena, mas que no Verão se transformavam no próprio inferno. Junte-se a isto que todos sabem que sou um fanático coleccionador de postais e compreender-se-á que decidissem vingar-se, de forma massiva, neste Verão, e me tenham bombardeado com os seus febris textos enviados das suas remotas paisagens (…).
É sabido que se escrevem postais para provocar inveja aos amigos, mas a minha teoria é que, no fundo, os que estou a receber este Verão me são enviados pela simples razão de que sou invejado. Por isso me escrevem, porque estão desesperados e se lembram de Barcelona sob o mosquiteiro do arraial, e então lembram-se de mim e de quanta razão tinha ao enumerar-lhes as excelências de um bom sistema de refrigeração caseiro.
Fazem-me pena, mas não estou disposto a perdoar-lhes a agressividade, o mau gosto ou a mal dissimulada inveja que destilavam as suas mensagens de náufragos desesperados. Por isso, decidi vingar-me deles publicando uma breve antologia dos seus envenenados textos. (…) Perguntava o inefável Jean Paul Sartre para que serve a literatura. Pois bem, vou responder-lhe: serve para muitas coisas, entre elas, para nos vingarmos no Verão dos amigos que nos invejam e nos mandam as suas nada invejáveis vistas de amanheceres em países zulus ou de entardeceres em casas de pardos países civilizados.
Na minha antologia de postais há de tudo. Estão os que tratam de provocar inveja e ainda por cima o dizem: “Dos Portais de Veracruz, brindando com benjuim para que morras de inveja. Abraços”. Estão os que mandam um insulto simpático: “Pensamos muito em ti, aqui em Cuba, sobretudo quando estamos rodeados de guacamayos, que são aves tropicais pertencentes à família dos papagaios. Beijos” Há os que enviam um mal dissimulado ataque a uma das tuas cidades favoritas: “Ter-te-ia encantado a Baía. È parecida com Lisboa mas sem a maldita saudade. Aqui vive-se para gozar, não para penar. Um besinho”. (…) E há os que tratam de informar que aprenderam francês: “On est descendu au Negresco. Temps sublime. Tout est parfait. Mon rhume est guéri. On revient le 17.”. (…) Os piores são os que nos chamam loucos: “Por este corredor de Tühingen deambulava o pobre Hölderlin quando perdeu – dizem – a razão. De modo que já podes pensar na possibilidade de te mudares para uma casa com corredor. Abraços mil.”. Disse mal, os piores não são os que nos tratam como loucos, os piores são os que em países longínquos se tornam escritores: “O fumo sonâmbulo chama-me num céu estranho enquanto decai a luz e a chuva retesa o seu arco para a casa de Musrafá, nosso guia”.
Está claro que o Verão não é a estação ideal para ler os amigos, pois os que te querem bem fazem-te chorar em Agosto. Quem sabe, talvez os postais fossem inventados para isso.
1 comment:
Fantástico!
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