Saturday, February 6, 2010

Quando um postal se torna num ícone...



Aldeia de Vilarinho da Furna (1968)
(postal ilustrado - foto de Manuel Antunes, AFURNA)


Um pai e os seus dois filhos fizeram-se à montanha, caminhando em direcção ao local onde em tempos existiu uma comunidade que ficou famosa por ter sido sacrificada no altar do progresso. Vilarinho da Furna (41º 46'N - 8º 11' W). No seu espírito havia como que uma romagem testemunhal a uma memória de infância, que o Pai, quando era filho, no princípio dos anos de 1970, fora assistir ao "espectáculo" trágico dos últimos dias de uma aldeia que brevemente iria submergir às águas de uma barragem hidroeléctrica. Mais do que o reencontro com a grandiosidade das forças da natureza ou o motivo para evocar as histórias perdidas de uma comunidade agro-pastoril, que bem próximo do seu fim exemplificava ainda uma realidade ideal - pelo menos, demonstrando ser possível viver sem existir dinheiro, onde as pessoas se ajudavam mutuamente nos trabalhos e nos infortúnios, ou que era possível administrar directamente os assuntos comuns do dia-a-dia com a participação de todos - enfim, onde parecia ser possível o que hoje de todo em todo se nos depara como impossível... Procurava, o tal pai, talvez ingenuamente, passar aos filhos, a ideia de que é possível a humanidade viver em harmonia com a natureza...
A circunstância, porém, não passaria da mera intimidade familiar, se nessa mesma jornada os caminheiros do momento se cruzassem com um velho apicultor - Manuel Barroso, mais conhecido pelo "Lojas" - que, saído do meio das giestas e das fragas onde estavam alcandorados os seus cortiços, da profundidade dos seus mais de oitenta anos e com a autoridade de quem fora nado na perdida Vilarinho, maravilhasse os forasteiros com o testemunho dos saberes essenciais da vida.
No final, o gratificante encontro ficou selado pela oferta espontanea de um postal ilustrado retratando, nostalgicamente, Vilarinho da Furna quando ainda era uma aldeia viva.


Requiem

Viam a luz nas palhas de um curral,
Criavam-se na serra a guardar gado.
À rabiça do arado,
A perseguir a sombra nas lavras,
aprendiam a ler
O alfabeto do suor honrado.
Até que se cansavam
De tudo o que sabiam,
E, gratos, recebiam
Sete palmos de paz num cemitério
E visitas e flores no dia de finados.
Mas, de repente, um muro de cimento
Interrompeu o canto
De um rio que corria
Nos ouvidos de todos.
E um Letes de silêncio represado
Cobre de esquecimento
Esse mundo sagrado
Onde a vida era um rito demorado
E a morte um segundo nascimento.

Miguel Torga
Barragem de Vilarinho da Furna
18 de Julho de 1976

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