Independentemente
da sua estatura, não haverá pessoa que esteja isenta das suas perversidades, pequenas
maroteiras e outras inconveniências sociais. Se esses 'desvios' do carácter ou
do comportamento constituem uma parte integrante da nossa experiência
quotidiana, porque não conceder-lhes o benefício do registo visual? Porquê remetê-los
para a clandestinidade social? Suponho que uma das razões é que o exemplo constitui
um aspecto fundamental da educação. Seja como for, tudo o que ronda ou mesmo
ultrapassa os limites do socialmente aceitável vende-se bem, e há quem não se
negue ao prazer de fazer o que a maioria evita ou condena. Se uns registam e
comercializam imagens sobre esses temas num espaço marginal, outros revelam
a capacidade de os abordar de forma mais criativa, construindo um discurso
visual mais elaborado, inserido no quadro da produção artística. Ao fazê-lo, reduzem
o seu impacto negativo e a sua condição marginal na sociedade. Uma das estratégias
possíveis desta abordagem é a encenação e registo de imagens que, supostamente,
não se inscrevem na vivência real mas apenas na sua representação a uma escala
reduzida, ou mesmo a uma escala real, favorecendo a sua partilha e circulação
em contextos sociais mais alargados. Como afirmou Grundberg, a propósito do trabalho de fotógrafos que a praticam,
«the figurines used in the work [...] suggest a displacement in the subject’s
importance, or at least in the importance of the subject’s being perceived as
real»[1]. Esta aproximação foi a utilizada para produzir uma
série de imagens reunidas numa publicação recente sob o título de “Naughty
little people postcards”[2]. Trata-se de um conjunto de bilhetes postais
publicados sob a forma ‘livro’, mas destacáveis e passíveis de uso sob várias
formas, incluindo a tradicional correspondência.
A fotografia de encenações escultóricas em
miniatura, teve uma grande difusão nos anos 60 do século XIX, sobretudo na
edição de imagens estereoscópicas com séries de narrativa temática muito
diversa, da política à religião, do acontecimento à narrativa fantástica, com
especial destaque para as “diableries”[3]. Foi trabalhada de uma forma singular
no período moderno por Man Ray (ca. 1926-1945, 1975-1976) e Fernando Lemos
(1949-1952)[4], e tomou novo alento com a difusão do pós-modernismo nos anos 70
e 80 do século XX, com o trabalho de artistas como David Levinthal (1972-2008),
Laurie Simmons (1976-2002) e Ellen Brooks (1978-1985), sendo actualmente praticada
por vários autores, como Mariel Clayton[5].
Nas imagens publicadas sob o título “Naughty little
people postcards”, a estratégia ressurge com uma estética visual actualizada e,
sobretudo no caso de Lisa Swerling, com uma abordagem pouco convencional.
Seleccionamos alguns bilhetes postais desta
edição, que seguidamente comentaremos de forma abreviada.
Jonah
Samson – Hope (© Jonah Samson,
cortesia do autor e Laurence King Publishing)
A imagem Hope,
de Jonah Samson, mostra-nos como a nossa vida é precária e depende em grande
medida dos outros. Não do 'outro' que age de acordo com as normas de conduta socialmente
aceites, mas dos que as transgridem. De quem, por algum motivo, explicável ou
não, tenha o impulso de destruir. Esperança de sobrevivência é o que resta a
quem se encontra na posição de depender do imprevisto, do que se passa na
cabeça do homem com quem nos cruzamos quotidianamente.
Jonah
Samson – Fucking (© Jonah Samson,
cortesia do autor e Laurence King Publishing)
Em Fucking,
Samson provoca-nos com a evidência do acto sexual praticado no espaço público.
Se esta imagem não fosse construída com miniaturas, estaria algures entre o
registo pornográfico e o voyeurismo fotográfico, ultrapassando a fronteira do que
é passível de ser publicamente partilhado. Encenada desta forma, a imagem ganha
alguma distância do óbvio e aproxima-se da experiência erótica. Se ambas as
imagens são miniaturas encenadas no registo ficcional, o seu impacto reside na
sua ambivalência entre narrativa ficcional e representação de uma ocorrência
real. Se a situamos num ou noutro pólo, isso depende mais do olhar de quem vê
do que do representado.
Lisa
Swerling – Smoking kills (© Lisa
Swerling, cortesia da autora e Laurence King Publishing)
Em Smoking
kills, Lisa Swerling usa a relação entre escala real e escala das
miniaturas para abordar a morte como resultado do consumo do tabaco. Literalmente,
aqui o que mata não é o consumo, mas o acto físico de apagar o cigarro, como se
de um castigo de um ser superior (em tamanho) se tratasse. Além disso, a morte
do 'outro' revela o voyeurismo do
cidadão comum, que constata e regista uma vez mais que a morte lhe passou ao
lado.
Vincent Bousserez – Special skating (© Vincent Bousserez, cortesia do autor e
Laurence King Publishing)
Em Special
skating, Bousserez cria uma sobreposição oscilatória entre a escala da
miniatura e a escala real, que integra por oposição, no plano emocional, os
conceitos de sonho e dependência, de ilusão e realidade. Extremos que por vezes
se tocam nas vicissitudes do enorme esforço de construção de uma carreira
profissional.
Estas duas últimas imagens não se limitam ao
registo de uma encenação a uma escala reduzida, mas exploram conscientemente categorias
semânticas da relação entre a escala real e a da miniatura numa mesma imagem
encenada, integrando a natureza desta representação no próprio acto de
concepção.
1. Grundberg,
Andy (1999) Crisis of Real: Writings on photography since 1974.
Denville, New Jersey: Aperture Foundation, Inc., p. 267.
2. Samson,
John; Bousserez, Vincent; Swerling, Lisa; The Rainbowmonkey (2012) Naughty
little people postcards. [S.l.]: Laurence King Publishing; Naughty
Little People Postcards, [http://www.laurenceking.com/en/naughty-little-people-postcards/, acedido em
18.04.2013].
3. Pellerin,
Denis (1995) La photographie stéréoscopique sous le second empire.
Paris: Bibliothèque nationale de France, pp. 21-22, 61-62, 64, 75, 82-90;
Weynants, Thomas (2003-) ‘Diableries, stereoscopic adventures in hell’,
in Early Visual Media, [http://www.visual-media.be/, acedido em 28.04.2013]
4. Ray,
Man, et al. (1991 [1.ª ed. 1982]) Man Ray Photographs.
2.ª ed. Londres: Thames & Hudson, pp. 164 [Série ‘Mr and Mrs Woodman’
(1927-1945)], 170-171 [La télévision, 1975; Sans titre, ca. 1927]; Janus
(org.) (2000) Man Ray. Lisboa:
Instituto Português de Museus, p. 296 [Sem título, 1975]; Man Ray Pro [http://www.manray-photo.com/catalog/index.php?cPath=32&largeur=1280&sort=3a&page=3&osCsid=20af93605d44f26c39cea6bc7f854f3a,
acedido em 28.04.2013], [‘Lydia and mannequins ‘ (1932), série ‘Mr and Mrs
Woodman’ (1947), ‘Tribute to Sade – Woodman’ (s.d.)]; Lemos, Fernando; Molder,
Jorge; Azevedo, Fernando (1994) Fernando Lemos: a sombra da luz.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian - Centro de Arte Moderna José de Azeredo
Perdigão, pp. s.n.º [‘Cena humana’ e ‘Nu de ensaio’].
5. Grundberg,
Andy; Gauss, Kathleen McCarthy (1987) Photography and art: Interactions
since 1946. New York: Abbeville Press, pp. 176-177, 208-209, 219, 227;
Levinthal, David; Prince, Richard (2009) Bad Barbie. New York: John
McWhinnie & GHB Editions [fotografias de 1972-]; Levinthal, David
(2000) XXX. Paris: Galerie Xippas; Ellen Brooks [http://ellenbrooks.net/tableaux-1978%E2%80%931985/, acedido em
28.04.2013], série ‘Tableaux 1978-1985’; Simmons, Laurie; Squiers, Carol
(2003) Laurie Simmons: In and around the house: The complete early
black and white photographs, 1976-1978. Carolina Nitsch Editions;
Simmons, Laurie; Howard, Jan (1997) Laurie Simmons: The Music of Regret.
Baltimore Museum of Art; Laurie Simmons [http://www.lauriesimmons.net/, acedido em
28.04.2013]; The photography / Mariel Clayton, [http://www.thephotographymarielclayton.com/, acedido em
28.04.2013]
No comments:
Post a Comment