Monday, February 24, 2014

Sapatinhos de postal


Poder-se-ia procurar uma explicação razoável para a afinidade congénita entre o postal ilustrado e o sapato: afinal de contas, os mais genuínos viajantes, que arredam caminho, calcorreiam ruas e palmilham estradas, são também remetentes destas missivas que tantas vezes mostram as vistas de cidades distantes. Mas as coincidências que unem a história destes dois objetos parecem mais pertencer à sucessão misteriosa dos acasos do que ao mundo das justificações lógicas.


Grande parte dos colecionadores e ajuntadores de postais usa as caixas de sapatos para acumular os mais velhos e os mais novos cartões de mensagens, estejam estes manuscritos, estejam estes em branco. O hábito já é tão conhecido que no postal que publicita uma caixa destinada à “arrumação racional de postais ilustrados”, à venda num mercado de antiguidades na Rue des Martyrs em Paris, a dupla de cartófilos franceses responsável pela invenção se regozija pela novidade que acabará com o enfadonho ritual de guardar postais em caixas de sapatos. Certo é que esta caixa, espécie de gadget que se viria a revelar demasiado pesada e, por isso, um fracasso, segundo testemunha o comerciante de postais antigos, não “chegaria aos pés” da sua popular rival.


E se nas caixas de sapatos gratuitas cabem postais de todo o tipo, também nos postais gratuitos cabem muitos sapatos. Já é sabido que muitas marcas de sapatos usam o formato do postal para publicitar as suas coleções: os freecards, postais gratuitos distribuídos em stands próprios numa rede de espaços públicos, cujo público-alvo é maioritariamente jovem, são um criativo suporte das campanhas publicitárias de marcas de calçado urbano e desportivo.

Mas, mais do que isso, os postais tornaram-se recentemente o material de decoração e o veículo de promoção da cadeia de lojas de sapatos Camper. Martí Guixé, designer espanhol, tem desde o ano passado atravessado o globo para modificar as montras e o interior dos pontos de venda de calçado Camper de todo o mundo – Bruxelas, Paris, Copenhaga, Chicago, Istambul, Singapura... As Camper Postcard Shops já são um fenómeno de popularidade mundial: a ideia é que quem compre um par dos vistosos sapatos da marca espanhola tenha também direito a escolher, escrever e enviar um postal, no interior da própria loja.


Finalmente, também na história de arte, o sapato tem, pelo menos, desde Van Gogh, um lugar privilegiado, no qual o postal não está ausente... Não fosse um dos mais populares gestos da mail art  ou arte postal, a obra concetual 100 boots de Eleanor Antin (1971–73). Esta última consistiu na viagem de 50 pares de botas por vários lugares do mundo, no seu registo fotográfico, na impressão das fotografias em formato de postal e no envio destas a artistas, críticos de arte, curadores e escritores.


Ainda no que às artes diz respeito, se na história do cinema, Charlot tornaria célebre o gesto de degustar um sapato, na história da fotografia, são outros os episódios que pairam no imaginário coletivo. No dealbar do séc.XX, um homem atravessa as ruas de Paris, ainda vazias, nas primeiras horas da manhã, com uma rudimentar máquina fotográfica e eterniza as montras dos comerciantes de bairros pobres. Entre muitas outras vistas, fixa com a sua objetiva por volta de 1910 uma prateleira de sapatos do Marché de Carmes na Place Maubert em Paris. O seu nome é Eugène Atget, vive pobremente das fotografias que vende a comerciantes, editores de postais da época, ou ainda, como no final da vida, aos Arquivos Nacionais franceses. Além de objetos de culto dos surrealistas, que tanto apreciavam os acasos objetivos e as afinidades inusitadas, as suas fotografias depressa se transformariam em ícones da cidade de Paris, vendidos em formato de postal a muitos dos viajantes de passagem pela capital francesa. 


Referências

Freund, G. (1974). Photographie et Société. Paris: Éditions du Seuil.
Held Jr, J. (1991). Mail art: an annotated bibliography. Londres: Scarecrow Press.

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