When was the last time you sent a postcard?
Questiona-se
Caitlin Dover, no Daily Mail, a propósito de “I got up”, uma das doze secções de
ON KAWARA – SILENCE (Feb 6 – May 3,
2015, GuGG, NY), a derradeira e, talvez, a mais extensa exposição de On Kawara
(1932-2014), proeminente membro da avant-garde
artística japonesa, da Tokyo do pós-guerra, que morreu em dia impreciso no ano
passado em Nova York a poucos meses desta ser inaugurada. A secção que nos
reteve a atenção é constituída por uma vitrine
e 16 painéis (rampe three) exibindo mais
de 1 500 postais ilustrados, em
dupla face, dos cerca de 8 000!, que o artista expediu sistematicamente ao
longo de 11 anos, entre 1968 e 1979,
aos seus amigos e conhecidos, entre os quais se encontravam alguns dos mais referenciados
artistas da década de 1970, tais como Kasper König, Sol
LeWitt, Lucy Lippard, e outros.
Kawara optou por usar
o espaço do verso do postal ilustrado destinado à mensagem para carimbar a
invariável, quão intrigante, mensagem: “levantei-me às”, indicando rigorosamente
a hora a que o fazia, geralmente por volta das 10:00 e as 11:00 A.M. Tendo
somente terminado o projecto apenas quando perdeu o carimbo de borracha com que
apunha suas mensagens.
Mais
do que uma expressiva série tão recorrente do conceptualismo artístico da época,
onde poderemos situar a sua obra, os cerca de oito milhares de postais ilustrados
chancelados à alvorada de Kawara têm um alcance bem mais vasto, porque traduzem
uma filosofia de vida. Diríamos mesmo, para além do sentido da arte, do
abstraccionismo sistemático do método e da disciplina férrea que esta comporta,
a produção/expedição diária de postais ilustrados, que chegou a compreender, ao
longo de anos, o envio de dois espécimes no mesmo dia, é um desafio à nossa
imaginação, ao próprio conceito de objecto artístico. As demais secções da
presente exposição assim o confirmam. Além dos cartões postais (I Got Up, 1968-79), veja-se, o exemplo:
das Date paintings, (Today, 1966-2013) uma elegia à referenciação cronológica a partir da
inscrição de uma data (a branco) sobre um fundo de tela monocromático
(vermelho, azul, ou cinzento); mas sobretudo, making maps (I Went,
1968-79), o mapeamento através de uma linha vermelha em plantas vulgares fotocopiadas
(24 vol’s), dos múltiplos itinerários urbanos que percorreu pelo mundo, com
coordenadas, dando conta precisa do lugar, do tempo e das relações pessoais que
travou; mas também, o catálogo diário dactilografado (I Met, 1968-79), organizado em volumes encadernados registando as
pessoas com quem se encontrava diariamente; ou mesmo, as compilações
exaustivas, dir-se-ia, algo obsessivas (One
Million Years, 1970-98) em que dois artistas
deveriam proceder à leitura de um livro de 20 volumes, a anunciar as datas que
permeiam os anos de 998.031 AC e 1.001.995. Mas também, a partir da colecção de
outros suportes corriqueiros, como: álbuns de recortes de jornais (I Read, 1966-95); calendários (One Hundred Years, 1970-98); ou os cerca
de 1000 telegramas que enviou entre 1969 e 2000 aos amigos, artistas e coleccionadores de arte, começando por anunciar,
“I
am not going to commit suicide don’t worry”, tendo prontamente moderado
para “I am still alive”… e outros
modos ainda, de expressão comunicativa minimal repetitiva, que se impõem pela
sua cadência, método, e persistência. Estamos certos, num processo que é ele
próprio de pulverização do tempo.
Aliás, Kawara, de cuja vida pessoal se conhece muito pouco, deu-nos
testemunho dessa reconceptualização do tempo, quando por sua iniciativa
resolveu contabilizar a idade em dias, facto que levou D. Zwirner (2015)
a estimar a vida do artista em 29 771 dias. De facto, ainda que o seu
amigo, o artista Lawrence
Weiner, atestasse que Kawara “era apenas uma pessoa normal”, a prática de
trabalho uniforme, obsessiva e inalterável ao longo de cerca de quatro décadas,
e de que a série “I Got Up” é prova evidente, deixa-nos essa inquietação
perturbante sobre o modo como concebemos e usamos o tempo. Metáfora perfeita,
como o próprio concebeu, para instalar nas rampas em espiral do Solomon
R. Guggenheim Museum, de New-York, obra-prima projectada Frank Lloyd Wright.
Daqui poderemos extrair duas considerações fundamentais. Por um lado, a
definição de um conjunto de protocolos e regras auto-impostas, que nos dão
conta da descrição, detalhada ao pormenor, da vida pessoal do artista, desde
que este se levantava até ao deitar. O tempo, o espaço e todos aqueles com quem
interagia. Ainda e contudo, a visão egocêntrica do artista feita acto comunicativo que, como convergem D. Buren e D.
Duray (2015), pressagia o mundo actual dos
mídia sociais, onde as pessoas documentam
continuadamente os pormenores da sua vida diária, independentemente da sua
banalidade, como numa página do Facebook,
a maneira como passam os dias, os lugares
onde vão, e as pessoas que encontram, para deixar um rasto de metadados diário
da sua [nossa] existência. E que acrescentaríamos, tal como Kawara enviava postais
ilustrados aos amigos a anunciar a hora e o local onde se levantava, porventura
também nós, hoje, utilizaremos, não muito diferentemente, as redes sociais
electrónicas para registar a nossa pegada digital quotidiana.
Por outro lado, o trabalho de On Kawara convoca-nos para a questão do objecto artístico na era da sua reprodutibilidade técnica,
desde logo através de um dos seus lídimos sucedâneos, a fotografia convertida
em postal ilustrado, que o artista explora hiperbolicamente até à exaustão. Isto é, o conceito estético da repetição levado até ao
paroxismo. Aqui mais do que uso material do postal ilustrado como um suporte,
ou fim em si mesmo, o sentido da própria arte consubstancia-se, sobretudo, no acto
de envio postal e na cumplicidade dos destinatários que com ele interagiam.
Perspectiva que nos permite invocar W. Benjamim (1936) perante a desvinculação
da “aura” do objecto artístico, da sua condição de peça única e singular. On
Kawara, com o seu labor disciplinado e preciso, ao qual, estamos em crer, não
será também estranha a sua sensibilidade oriental de origem, estabelece um modo
de trabalho interpelador. Embora assente em suportes banais de representação do
espaço e do tempo, apresentados sob uma conjugada vastidão oceânica, como certamente reconheceria W. Benjamim, a obra resgata
os valores tão caros à essência canónica do objecto artístico. Tal como ocorreu
com a Pop Art, a partir do
reordenamento dos objectos, sobretudo, pelo impacte plástico da imagem do seu
conjunto, a obra adquire uma nova unicidade, torna-se singular pelo método e,
finalmente constitui-se autenticamente verdadeira pela filosofia de vida que
proclama. O valor do uso que damos ao nosso próprio tempo.
Por exemplo
aquele pequeno gesto que, depois de percorrer a exposição de On Kawara, no faz
pensar no conhecido vaticínio de que aquilo
que fazes, por mais ínfimo que seja,
projecta-se no infinito e na eternidade.
A
propósito, Quando [é que] foi [mesmo] a última vez que você enviou um cartão postal?
MSMB, Abril 2015
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