Wednesday, December 2, 2009
"TUDO É DIFERENTE NO CAIRO QUENTE"
Os postais têm também este dom de reatar contactos, de servirem de pretexto para revisitar memórias que trazem penhorados os nossos afectos. Desta vez foi a longa amizade de uma prima que, por efeito da mediatização do projecto, vendo-nos a ele associado, foi procurar ao fundo da gaveta um daqueles molhos íntimos de correspondência, canonicamente cintados por uma fita de seda, dos quais flui ainda uma suave fragrância de velho perfume, e nos fez uma oferta.
Dos exemplares resistentes, que o passar do tempo patrimonializou, retiro um espécime sugestivo pela natureza "exótica, misteriosa, e emocionante", que a distância do tempo e do espaço, a curiosidade pela viagem, e até, talvez, a expectativa da aventura, atribuem ao “orientalismo” do motivo, um dos maiores temas nobilitadores da ilustração, em geral, e do postal ilustrado, em particular. O mesmo Oriente, diverso e distante, que nos desconstrói Edward Said (1978) e que nós, ocidentais, inventámos, degenerando-o até à perversidade de hoje o reduzirmos a um mundo "problemático e perigoso".
O motivo em causa é a mesquita azul e a animação da estreita rua que lhe dá acesso, no Cairo da primeira metade dos anos de 1930. Como não poderia deixar de ser, o postal ilustrado é de edição britânica e o sentido de quem enquadrou o plano da foto não é muito diferente da intenção de quem o expediu. De facto, este não se distingue assim tanto das memórias difusas de Ulisses na costa africana em busca do retorno a casa ou dos arcaicos relatos de Heródoto que estigmatizou essa expressão de alteridade civilizacional. A mesma ainda que, muito mais tarde, viria a identificar o imaginário de viajantes em "Tour", a filantropia de um Lord Byron, ou a sustentar ainda, sob a égide de Napoleão Bonaparte, a publicação da célebre "Description de l'Égypte, Recueil des observations et des recherches qui ont été faites en Égypte pendant l'expédition française de l'armée" (1809-1829). Produto do trabalho de mais de centena e meia de sábios que integraram as ditas campanhas militares francesas no Egipto entre 1798 e 1801, e que determinaram a imagem de marca do Egipto romântico que proliferou por todo o século XIX. O reconhecido “orientalismo” que perdurou e subsiste, permitindo-nos imaginar T. E. Lawrence (1888-1935) (o das arábias...)a passear por essa mesma rua que vem no postal, ou que nos traz à memória as estrofes daquele sucesso musical português do principio dos anos de 1980, exaltador desse velho mito ocidental… uma vez e sempre o tal exacto "postal" do nosso inconsciente colectivo.
"Isto é o Cairo
Distante, Cairo
Excitante, Cairo
Apaixonante
(…)
aaah, tudo é diferente
aaah, no Cairo quente"
Cairo, Táxi (LP, Polygram, 1982)
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment