Saraiva, A. (2011) A Guarda em Postal Ilustrado de 1901 a 1970. Guarda: Gabinete de Promoção para a Guarda.
Eram uma meia dúzia de veraneantes na pequena loja
envidraçada onde se improvisava anualmente uma feira do livro. Tinham chegado
ali precipitados pelo calor estonteante de agosto, fugindo aos raios de sol da
tarde, e evitando o cheiro a mar e a incêndio disperso pelo ar. Atravessavam o
pavimento, pisando restos de areia e reconheciam-se ao longe, pelos calções distraídos, pelas t-shirts que deixavam a
descoberto as alças do biquíni, pelos óculos de sol na cabeça e as garrafas de
água na mão. Rodeavam os livros impacientes, folheando daqui e dacolá. Nas
bancas de contraplacado, um grande livro pálido, com uma fotografia a sépia da
cidade da Guarda coberta de neve, chamou a minha atenção. Estaquei bem a meio
do corredor, agarrei desajeitadamente o livro e, com algum vagar então, comecei
a virar as páginas.
Era uma publicação dedicada aos postais ilustrados da Guarda
circulados entre 1901 e 1970, reeditada
recentemente. Os tradicionais temas da cartofilia sucediam-se com a monotonia do tempo que passa e do tempo que faz no catálogo de promoção da cidade da beira interior que
mal conhecia; mas, chegando a meio do livro, uma vintena de páginas era
reservada aos postais fotográficos da Guarda em dias de neve... Os postais da
Guarda com neve, vistos a partir de um agosto tórrido no litoral balnear português,
pareciam provas de existência de uma cidade fantástica, de um povoado feérico, de uma terra de faz de conta: as fachadas dos velhos edifícios rendilhadas pela
espessura branca da neve, os cavalos de madeira de um velho carrossel parados
pelo Inverno gelado, os automóveis antigos com as suas muitas curvas
arredondadas pelo pesado nevão, os portões de ferro bordados pela fina camada
de neve, as árvores e os seus ramos suportando a queda de um grande floco
branco, tudo isto pareciam visões de uma outra
parte, cuja estranheza era agravada pelo agosto e pelos seus reclames de
estâncias balneares, pelas suas fotografias de retiros estivais, pelos seus
postais ilustrados de férias...
Interior do livro A Guarda em Postal Ilustrado de António Saraiva (secção de postais dedicados à neve)
Ocorreu-me então que ainda não tinha escrito nenhum postal
nesse Verão, e que, se o fizesse, em vez da clássica fotografia do farol, do
barco, do areal ou do mar, preferiria garatujar nas costas de um desses irreais postais fotográficos da
Guarda coberta de neve, como quem quisesse reinventar o agosto.
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